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sexta-feira, 31 de maio de 2013

A Religiosidade do povo brasileiro


José Lisboa Moreira de Oliveira * 
Na última semana do mês de agosto de 2011 foram publicados os dados da Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Tais dados trazem algumas informações interessantes sobre a religiosidade do povo brasileiro.

[José Lisboa Moreira de Oliveira*, Adital, 16 set 11] O primeiro aspecto da pesquisa que chama a atenção é o aumento das pessoas que não mantêm vínculos com a sua crença. Declaram-se pertencentes a uma denominação religiosa, mas reconhecem que não são praticantes. Entre os católicos isso já era bem visível. A novidade está por conta dos evangélicos, onde os não praticantes passaram de 0,7% para 2,9%.

Tal situação revela que as pessoas, cada vez mais, constroem sua religiosidade sem se preocupar com o que dizem as suas instituições religiosas. Vale a interpretação pessoal e não a orientação das lideranças e das igrejas. Para as instituições religiosas isso representa um grande desafio, uma vez que tal fenômeno enfraquece o poder de controle sobre as pessoas e de transmissão das tradições religiosas. Pode ser o início do fim de muitas igrejas e religiões, pelo menos em determinadas partes do mundo.

Embora não seja totalmente uma novidade, uma vez que o fenômeno já vem de algum tempo, um segundo elemento bem significativo é o aumento do trânsito religioso. Trata-se da circulação de fiéis por diferentes denominações religiosas. As pesquisas apontam que pelo menos 53% dos brasileiros e das brasileiras já circularam por mais de uma denominação religiosa. A mobilidade entre os evangélicos chega a quase 40% dos adeptos de igrejas pentecostais e neopentecostais,

Para explicar esse fenômeno, Libanio, estudioso da questão, usa a metáfora do ônibus circular: tem sempre gente entrando e saindo. Isso revela a incapacidade cada vez maior de atrair e de segurar os fiéis, por parte das instituições e lideranças religiosas.

Fica bem evidente que a religiosidade se tornou uma experimentação. As pessoas não se fixam mais no institucionalizado, mas exercitam o poder de escolha, como fazem para tantas outras questões. Há o afrouxamento dos vínculos e dos compromissos. Esse dado revela a impotência das instituições. Elas não conseguem oferecer algo mais consistente, capaz de levar o fiel a aderir aos seus credos de modo permanente ou definitivo.

É claro que tal fenômeno tem a ver com a pós-modernidade, período em que tudo o que é sólido “se desmancha no ar”. Mas revela também uma profunda crise interna das instituições religiosas. Elas não exercem mais poder de atração sobre os fiéis que nelas estão ou chegam. Mostra como seus processos pedagógicos e metodológicos – se é que eles realmente existem – não mais funcionam para os tempos atuais. Precisam encontrar alternativas. Mas parece-me que isso continua muito difícil, uma vez que tais instituições, diante de fenômenos como esses que a pesquisa menciona, ao invés de buscarem outros caminhos, se fecham nos casulos do fundamentalismo e do conservadorismo. Elas continuam rígidas, fechadas, intransigentes e insensíveis aos verdadeiros problemas das pessoas que pedem mais flexibilidade, compreensão, misericórdia, perdão e ternura.

Um terceiro dado revelado pela pesquisa mostra que são as mulheres a mudarem de religião com mais frequência. E fazem isso mais por razões altruístas do que por motivos pessoais. As razões vão desde a recuperação de um casamento até a preocupação com um filho ou um parente doente. Já os homens mudam de religião na tentativa de resolver questões pessoais. Também aqui aparece a crise das instituições. Fazem muito barulho na mídia e nos templos, mas na prática não acompanham e nem seguem de perto os seus fiéis. Há rebanhões, encontros de massas, concentrações, acampamentos, mas as pessoas continuam se sentindo sozinhas, abandonadas. Por isso vivem mudando de religião, de igreja, na tentativa desesperada de encontrar alguém que as ajude concretamente.

A atual política das igrejas é de arrebanhar multidões e não de solidariedade, de escuta e de oferecer apoio real às pessoas. Essas continuam se sentindo sozinhas e sem ninguém. Os templos religiosos se tornaram supermercados da fé, onde se vendem “kits de salvação” a preços diferenciados, segundo o poder aquisitivo de seus fiéis. As igrejas se tornaram agências de prestação de serviços religiosos. O marketing e a propaganda atraem os fiéis para que comprem os kits. Mas, ao experimentarem os produtos, os fiéis descobrem que eles não passam de propaganda enganosa, uma vez que a vida não muda num passe de mágica, com o consumo de um produto religioso. Por isso vão à busca de outros kits, na esperança de um dia encontrar algum “elixir milagreiro” que resolva todos os seus problemas.

Há mais um dado que me chamou muito a atenção: o crescimento no Brasil da religião mulçumana. Pesquisas revelam que o número de convertidos na comunidade mulçumana do Rio de Janeiro pulou de 15% em 1997 para 85% em 2009. Segundo os dados, a conversão de brasileiros para o islã cresceu em 25%. Em Salvador, 70% da comunidade mulçumana são de pessoas convertidas. O crescimento se dá não obstante toda a propaganda anti-islâmica desenvolvida pelos países ocidentais, liderados pelos Estados Unidos. A pesquisa está em consonância com os dados mundiais. Segundo algumas estimativas, em 2050, os mulçumanos serão a maior religião da Europa em número de fiéis.

O que faz uma religião tão perseguida, e tida como perigosa para a liberdade e a democracia, crescer de modo tão acelerado? Alguns pesquisadores acreditam que as pessoas estão se dando conta de que o islã não é esse “bicho-papão” pintado pela propaganda ocidental. Sua religiosidade permite maior compreensão de certos problemas, inclusive mundiais, que outras formas de religiosidade não conseguem oferecer. Ele se apresenta como uma religião menos intransigente do que aquilo que se pinta na propaganda midiática. Por outro lado, oferece mais solidez e motivações do que as religiões tradicionais do país.

Portanto, o perfil da religiosidade brasileira aponta para uma autonomia religiosa dos fiéis. Estamos cada vez mais deixando de lado a fé institucionalizada para abraçar uma religiosidade mutante, híbrida e pouco ortodoxa. Os contornos religiosos são escritos a lápis para serem apagados e refeitos sempre que for preciso. Quem sabe seja a oportunidade para que as instituições religiosas, acostumadas a tratar seus fiéis como simples “cordeirinhos”, aproveitem para fazer revisão de suas práticas, começando a enxergar o óbvio: hoje as pessoas querem ser autônomas e livres. Não mais aceitam ser amarradas pelo “cabresto” das lideranças religiosas.

*José Lisboa Moreira de Oliveira é Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília

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