Para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o ex-presidente Lula foge à sua responsabilidade: "Ele (Lula) chamou seus exércitos, sumiu, e agora é Dilma que é a culpada de tudo?". Segundo, também, o ex-presidente, “Uma característica do Lula é que em momentos de dificuldade ele some”.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso estava no Rio no domingo. Acha que o momento ainda é das ruas e não dos partidos. Por isso não foi para o calçadão. Os panelaços o deixam mais preocupado do que os carros de som que pedem intervenção militar por traduzirem uma sociedade surda à ação do governo – "É grave isso". O ex-presidente chama à responsabilidade seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva. Diz que o recado de domingo é que Lula e a presidente Dilma Rousseff não terão como fugir de assumir suas responsabilidades na Lava-Jato.
A seguir a entrevista concedida ao Valor Econômico na sede do seu instituto no centro de São Paulo, na tarde de ontem, quando uma iminente tempestade se dissipou num céu nublado – "A política também é assim".
Como o senhor compara as manifestações de domingo com aquelas de junho de 2013?
Como o senhor compara as manifestações de domingo com aquelas de junho de 2013?
Fernando Henrique Cardoso: Em junho de 2013 você tinha uma multiplicidade de objetivos, um mal estar generalizado. Agora esse mal-estar se transformou em indignação contra quem representa o poder, que é Dilma. Agora politizou mais.
Dos quatro carros de som da Avenida Paulista, um chamava intervenção militar e outro fazia pregação anticomunista. Ao contrário de 2013, não se viam tantos jovens, mas famílias.
É outra marcha de direita, 51 anos depois?
É outra marcha de direita, 51 anos depois?
FHC: Isso é marginal. Esses grupos se aproveitaram da manifestação mas esse não é o sentimento da maioria. São palavras de ordem à la Bolsonaro. Ele queria me fuzilar quando eu era presidente. Isso não expressa o sentimento popular que é de indignação em relação à corrupção ampla, geral e irrestrita e bem incrustada no Estado.
Na campanha de 2010, Wanderley Guilherme dos Santos escreveu no Valor que aquela seria a última eleição da distribuição de renda. Não daria mais para avançar sem perdas a serem arbitradas.
É este o confronto de hoje?
É este o confronto de hoje?
FHC: A distribuição de renda é um processo longo no Brasil. O impulso nessa direção veio da Constituição de 1988 que generalizou saúde e educação. Fomos materializando isso ao longo de vários governos. Se você olhar o coeficiente de gini já no meu governo começou a diminuir com os programas sociais. O mais importante fator de distribuição de renda foi o salário mínimo. Tudo isso está conectado com o ciclo da economia. Quando a economia expande globalmente você ganha mais margem de manobra. Hoje há mais dificuldade de persistir nessa política até que haja um novo ciclo de expansão mas não acho que haja margem para marcha a ré nas políticas sociais. O grau de consciência da necessidade de se diminuir a desigualdade é muito grande no Brasil para a manutenção não apenas da democracia mas da prosperidade. O livro do [Thomas] Piketty diz isso: olhaí se vocês não tiverem cuidado vão matar a galinha dos ovos de ouro.
Crescem as pressões no sentido de mandar o ajuste para as calendas e recuperar sua base social para dar uma resposta a manifestações como a do domingo. Como o senhor vê essa possibilidade?
FHC: É um duplo erro. Não se recupera base assim de repente e a economia vai piorar. Talvez se possa dosar o ajuste. Ninguém faz ajuste fiscal pelo prazer de fazê-lo. É quando as contas estão desequilibradas. Se você não as reequilibrar vai piorando mais. E, sobretudo, explicar à população. Este agora veio a frio sem que a presidente politicamente assumisse o ônus do ajuste jogando a culpa ou em mim ou na situação internacional, de uma maneira muito tecnocrática e no sentido oposto do que ela disse na campanha.
Tem sido muito lembrado que o estelionato eleitoral nesta campanha assemelha-se ao de 1998. Não há semelhanças?
FHC: Só que tem-se esquecido do seguinte: em 1998 eu fiz o discurso no Itamaraty em setembro, antes das eleições, dizendo que faria o ajuste e poderíamos apelar até ao fundo monetário. Além disso, as medidas fiscais foram tomadas antes da eleição. Não foi decisão do governo que estourou o câmbio. Foi o mercado. No dia em que publicar minhas memórias vocês vão ver minhas discussões com o Clinton em que eu dizia que não tinha nenhuma condição política de mexer no câmbio. Foi o Delfim [Netto] quem inventou isso do estelionato eleitoral. Não é verdade. Não houve a intenção de enganar, nós é que não tivemos força para manter. Agora ela pode dizer a mesma coisa, que não teve força. Mas não diz.
O senador José Serra (PSDB-SP) apresentou um projeto de Nota Fiscal Brasileira que implica no pagamento, pela União, de metade daquilo que já é devolvido pelos Estados via restituição do IR. Distribui renda com mais gasto público. Será esse o caminho do PSDB?
FHC: Não creio. A proposta é dele. Ele adotou a nota em São Paulo. E deu certo. Arrecadou mais que gastou. Faz no sentido de que possa ser uma medida positiva, mas não foi discutida, pelo menos não comigo.
"Os panelaços mostram que não é o governo que está surdo para a sociedade, mas o inverso; é grave isso"
No domingo lideranças do PSDB não quiseram subir em carros de som porque os políticos não eram bem-vindos. O senador Aécio Neves acenou da varanda do seu apartamento. Há receio de envolvimento, mas lideranças dos movimentos que puxaram a manifestação cobram engajamento da oposição. O PSDB não vai assumi-los?
FHC: Não cobraram antes. Queriam que fosse movimento espontâneo. Se fôssemos lá diriam o contrário, que queríamos surfar na onda. Não estamos na posição de cavalgar um movimento que é muito mais amplo que o partido. E é um movimento que ainda não tem um caminho político claro, nem mesmo obscuro, é apenas uma explosão. A responsabilidade dos partidos é construir esse caminho agora que passa por ser muito rígido e rigoroso na apuração dos fatos. Evitar qualquer tipo de pizza e marmelada e envolva quem quer que seja. Em português claro: não é crível que o que aconteceu na Petrobras fosse desconhecido por quem estivesse no poder, seja Lula seja Dilma. Não digo que estejam involucrados no assunto, mas não é crível que estivessem alheios. Foram muitos anos com diretores sustentados pelos partidos. O rei está nu e tá todo mundo fingindo que ele está vestido ainda, não está mais. Esse panelaço, por exemplo, é uma coisa curiosa. Não é o governo que está surdo para a sociedade. É a sociedade que está surda para o governo. É grave isso.
Deixa a entender que não importa o que o governo faça dificilmente será ouvido e acatado?
FHC: Sim. O governo pode vir a recuperar a iniciativa, mas não vai recuperar com ministro enrolando na televisão. A resposta da reforma política não é crível. A saída é ir mais fundo nas investigações e reconhecer: erramos. Quantas vezes não disse que errei por não ter ajustado o câmbio antes de 1998? Tinha mil razões para dizer porque não ajustei mas não importa. Não se pode fugir da responsabilidade histórica. Fica esse jogo de cabra cega. O presidente Lula foi fazer uma declaração absolutamente imprópria, de pedir que os exércitos da CUT e do MST fossem para a rua. Depois ele se cala? Não se sente responsável se depois os ânimos se acirrarem? Ele sumiu e agora é só Dilma que é a culpada? Só se lê nos jornais que Lula reclamou da Dilma. Que é isso?
O ex-presidente foge de suas responsabilidades?
FHC: Sim, claro. Esses desatinos que foram praticados pelo governos em várias áreas como na política de campeões nacionais, da retenção do preço da gasolina e da política energética. São responsabilidades históricas do Lula, da Dilma e do partido deles que conduziu esse processo. Agora dizem que foi o Guido?
O senhor diz que não se pode ir a fundo na apuração das responsabilidades nos desmandos na Petrobras, mas no inquérito surgiram elementos como a delação do ex-diretor Pedro Barusco, que disse ter começado a cobrar propina em 1997. Como o senhor responde a isso?
O senhor diz que não se pode ir a fundo na apuração das responsabilidades nos desmandos na Petrobras, mas no inquérito surgiram elementos como a delação do ex-diretor Pedro Barusco, que disse ter começado a cobrar propina em 1997. Como o senhor responde a isso?
FHC: Li todos os depoimentos do Barusco. Foi um ato individual dele. A institucionalização veio depois de 2004. Ele foi claro. Não existe isso, mas não tenho nenhum medo que se apure. Não tenho nada a ver com isso.
O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, disse que a corrupção se avolumou com a carta-convite adotada em seu governo em substituição à Lei de Licitações na Petrobras. Ele está errado?
FHC: Aquilo foi uma exigência natural do sistema econômico. Como a Petrobras deixou de ser monopólio, para ela poder competir com as outras empresas ou tem mais agilidade ou não consegue. Foi condição para viabilizar a flexibilização do monopólio e favorecer a Petrobras. Agora não foi com o propósito de se fazer o que se fez depois. Foi para competir. Se a carta-convite fosse a causa, toda empresa privada teria malandragem porque elas têm essa flexibilidade. E se estava errado porque deixaram aí por 12 anos? Era um decreto. É só mudar e deixar a Petrobras sem condições de competir com a Esso ou com a Shell.
Que atualização o senhor faria da teoria dos anéis burocráticos?
FHC: Tem alguma similitude, mas naquela época do regime militar eu dizia que o jogo político não estava fora do Estado estava dentro. Agora não é assim. Você tem os dois jogos. Fora e dentro. Quando Luciano Coutinho foi designado presidente do BNDES sabia que ele adotaria a política dos campeões nacionais, o modelo coreano. Só que a Coreia foi por outro modelo, do desenvolvimento tecnológico. Não foi fazer frigorífico lá fora. Ali começou a haver um bloco hegemônico, à la [Antonio] Gramsci. Começou a solidificar via anéis burocráticos, os interesses do governo com camadas empresariais importantes. E por vários caminhos. Os fundos de pensão também serviram para isso. Até no meu tempo.
Nas privatizações…
FHC: Sim, tudo foi aprovado pelos fundos de pensão que eram controlados pelo PT. É mais do que uma coisa de interesse menor. É que coincidiu o interesse dos fundos de pensão com o grande capital. Isso deu hegemonia efetiva. Por que Lula era o queridinho de todos? Porque ele tinha bolsa família mas tinha também bolsa empresário. Quando o sistema econômico começou a fazer água qual foi a reação do bloco empresarial? Essa senhora não serve, tem que ser o Lula. Não foi ela quem montou isso. E não foi ela quem destruiu o sistema. Foi a própria expansão desordenada da economia que acabou o dinheiro. Isso rompeu a hegemonia, as bases de uma política de longo prazo que têm apoio na estrutura da sociedade. Estamos num momento de transição.
Para que modelo?
FHC: Não pode ser uma ideia. Tem que se organizar forças sociais que sustentem um tipo de desenvolvimento. Quando o Aécio foi candidato, qual era a ideia? Vamos tentar reatar as bases de crescimento nas cadeias produtivas globais com uma separação mais nítida entre interesse público e privado para sustentar uma política para despertar o interesse de outros agentes sociais, econômicos e políticos. Mas Aécio não ganhou a eleição. E você não faz isso fora do poder. Vamos ter um período bastante ruim aqui no Brasil.
É isso que diferencia hoje do impeachment de Collor?
FHC: Acho que sim. Não havia nada disso naquele período. Foi uma coisa mais circunscrita, uma crise política. A situação econômica não era brilhante, mas não foi por aí que a coisa arrebentou. Agora não, temos uma crise econômica, política e ainda não temos uma crise social. O desemprego cresceu mas ainda não é assustador. A inflação subiu, está pegando mais que o desemprego, mas ainda há margem de manobra do governo. Não sou fatalista. Não podemos deixar de contar com a reação do outro. Está visível que o ministro da Fazenda foi colocado lá não pela razão, mas pelo coração. E está visível também que ele tem uma força enorme, pela ideia de que se ele for embora a coisa explode. O ministro evitou até agora o downgrade do Brasil. E tomara que evite porque se houver downgrade pagaremos todos nós o preço. Não se soluciona a questão econômica sem solucionar a política.
"Se a presidente achar que é momento de me chamar, deve ser público, não é hora para conchavo"
Nesse xadrez político como o senhor vê o papel do PMDB na sustentação do ajuste fiscal quanto na transição para 2018?
FHC: É importante, mas já foi mais do que é hoje porque o PMDB encolheu numericamente. Tem hoje 66 deputados, o PSDB tem 54, o PT tem 68.
Juntando os três não dá um terço da Câmara.
FHC: Fica complicado. Como o PMDB tem um núcleo mais consistente dos seus interesses e tem capacidade de conversar com os outros, continua exercendo um certo papel. O PSDB vai ter papel crescente porque tem uma bancada no Senado extremamente competente. E o Senado é uma caixa de ressonância. Tem 10, 12 senadores de primeiro plano. Se atuarem em conjunto com o PMDB, há margem para avançar.
O PSDB ao lado do PMDB pode dar esteio ao ajuste?
FHC: Do ajuste é difícil. Quem vai pagar esse preço é o PT. Ninguém vai por a mão no fogo para tirar as castanhas. Claro que não são malucos de negar o necessário. Acho que não haverá irresponsabilidade de negar o ajuste, mas vai custar para fazer.
Mas o gesto do senador Renan Calheiros (PMDB-AL) de devolver as MPs não foi saudado pelo PSDB?
FHC: Claro, porque viram imediatamente um gesto de oposição ao governo mas não quer dizer que vão persistir nisso, nem o próprio Renan. Mas todas essas possibilidades no Congresso dependem da Lava-Jato. Não está claro ainda onde vai dar. É um processo longo, aflitivo. O tempo da aflição da vida da gente não é o da história. Como estou quase no além me preocupo mais com a história do que com a minha vida. Vai levar tempo para criar novas forças, mas tem que passar a limpo. Não dá para tapar o sol com a peneira e fazer conchavo. A tendência é grande porque há muitos envolvidos. A rua jogou o papel que tem que jogar. Com a pressão, o entendimento terá que ter bases mais claras.
Como o senhor vislumbra um 2018 com um país devassado por ajuste fiscal e por um longo inquérito de corrupção. Na Itália deu Berlusconi. Aqui dá o que?
FHC: O risco Berlusconi só acontece se não houver estruturas partidárias com ação política que aglutine. Aqueles que dão as cartas no sistema político, o PT, o PSDB e o PMDB têm capacidade de aglutinar. O PT recusou lá atrás o caminho que era o mais razoável que era aglutinar com o PSDB. Inventaram que o inimigo era o PSDB porque era neoliberal. Como se eu dissesse agora que a Dilma é neoliberal porque está fazendo o ajuste. Quem sabe o PT agora um pouco mais sofrido e reduzido em suas pretensões passa a ser um ator mais razoável no jogo do poder. Risco sempre há de um caudilho, militar não. O que se precisa é de um fortalecimento contínuo das instituições que, bem ou mal, estão funcionando. Não vejo risco à democracia no Brasil.
O senhor aceitaria um convite da presidente para conversar?
FHC: Nunca recusei chamado de ninguém para conversar. Nem da Dilma. Na crise de junho, se as coisas não avançaram não foi por minha conta. Até me arrisquei de tentar conversar. Agora o momento não é de conchavo. Se a presidente achar que é momento de chamar, deve ser público. Não se pode conversar sem uma pauta. Não sei se ela tem força convocatória, porque não tem que chamar só a mim. Tem que ampliar. Agora temos que digerir, todos nós, esse processo todo e ver o que vai acontecer nas próximas semanas. Vamos ver se o governo vai pagar o preço de correr mais fundo esse processo de estabelecimento das responsabilidades. Não no sentido de ficar açoitando o outro, mas para se ter uma conversa desarmada. Não posso ir conversar com uma pessoa que vai para a televisão e fica dizendo: foi FHC. Que é isso? Calei-me muitos anos sobre esses ataques que sempre me fizeram. Como se a privatização fosse um crime de lesa pátria. Agora estão privatizando tudo. Por que num caso é pecado e no outro é louvável? Não dá para achar que tudo o que o PSDB fez foi errado. Não acho isso do PT, nunca achei. Tem que baixar a bola.
Que papel o senhor acha que o Lula deveria desempenhar nesse concerto?
FHC: Lula vai ter que deixar que as coisas aconteçam. Ele vai ter que explicar melhor toda essa confusão havida aí com Lava-Jato. Responsabilidade política ele tem. Você não sabe de uma porção de coisas mas, a partir de um determinado limite, você tem que agir. Qualquer pessoa medianamente informada em Brasília sabia. Uma característica do Lula é que em momentos de dificuldade ele some. Eu entendo que é uma saída tática, mas chegou a um limite, não dá mais. Não gosto de ficar criticando o Lula, mas acho que todo mundo tem que assumir seu papel na história e suas responsabilidades.
Há quem tenha lido na declaração do senador Aloysio Nunes Ferreira, a de que o PSDB quer sangrar a presidente, a explicitação de uma estratégia. Foi?
FHC: Foi uma frase momentânea do Aloysio. A mim foi atribuído a mesma frase num momento de possibilidade de impeachment de Lula que era mais forte que o atual, quando o Duda Mendonça admitiu que recebia no exterior, mas não foi isso. Naquele momento Lula simboliza a ascensão social e política. Fazer o impeachment naquele momento era dividir o Brasil. Reproduzir UDN e Getúlio é um processo que leva anos para sanar. Minha razão era histórica, não era para Lula perder a eleição. Imagino que seja por aí que Aloysio pense. São preocupações institucionais. Impeachment é um processo político, mas tem que ter apoio na rua e no Congresso. Não é o julgamento de um crime.
O senhor discorda da avaliação de que um presidente presidido por Michel Temer facilitaria a volta de Lula?
FHC: Tenho dúvidas sobre a volta do Lula. As coisas mudam. Não digo sobre ele querer ou não que é problema dele, mas de a população aceitar. O clima é outro hoje. Se fosse de imediato, a oposição ganharia, mas imagine o que seria esse processo. São dois que caem. E fazer uma eleição num momento desses, divide muito. Não estou dizendo que isso não possa acontecer. A história é mais complicada que a vontade das pessoas. (valor).
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