ALIADOS
Os presidentes do Senado, Renan Calheiros, e do
Supremo, Ricardo Lewandowski, na semana passada. Juntos, eles operaram a meia salvação de Dilma (Foto: Agencia Senado) |
ANA CLARA COSTA E BRUNO BOGHOSSIAN 07/09/2016
Sentado ao lado compositor Chico Buarque na galeria do Senado, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva cochichava, checava mensagens no celular e, vez ou outra, franzia o cenho para demonstrar atenção ao depoimento de Dilma Rousseff, que já se estendia por mais de seis horas. No fim da tarde, Lula desapareceu. À saída, deu uma declaração enigmática, diante do segredo de polichinelo de que o impeachment era fato consumado: “O jogo vai terminar com uma vitória nossa”. Naquela tarde de segunda-feira, dia 29, Lula foi à casa do senador Edison Lobão (PMDB-MA), onde se encontrou com os outros dois integrantes da bancada maranhense: João Alberto (PMDB) e Roberto Rocha (PSB). Ali, abriu o jogo e comunicou uma operação em andamento com a participação do presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), e do presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski. O ex-presidente disse que se preparava um fatiamento da votação de cassação do mandato de Dilma e da inabilitação dela para exercer cargos públicos por oito anos. Pediu a adesão de Lobão à ideia. Lobão consultou o filho, Edinho, seu suplente, sobre eventuais repercussões eleitorais de dar uma ajudinha a Dilma. Decidiu aderir ao ineditismo.
O drama que mudou o país
O processo de convencimento de Lewandowski foi mais longo. Duas semanas antes da manobra, o magistrado se reunira com líderes partidários no Salão Negro do Congresso para definir o rito do impeachment. Provocado pelas defensoras de Dilma, as senadoras Gleisi Hoffmann, do PT do Paraná, e Vanessa Grazziotin, do PCdoB do Amazonas, sobre a tese, Lewandowski respondeu, com convicção, que a inabilitação era uma consequência da condenação. Pediu a uma auxiliar que lesse o Artigo 52 da Constituição e assegurou que as penas deveriam ser aplicadas em conjunto. Dias depois, um intermediário de Lula falou com o ministro. No sábado, dia 27, Lewandowski pediu a assessores que levantassem se a tese, de fato, era uma possibilidade constitucional. Fabiane Duarte, a assistente que permaneceu a seu lado na mesa do Senado durante todo o julgamento, trabalhou durante o domingo para sanar as dúvidas do chefe em torno do tema. No mesmo dia, ele decidiu que a tese do fatiamento tinha amparo legal. Diante do sinal positivo de Lewandowski, Renan trabalhou por dois dias no convencimento de seus pares junto com Lula. Às 22 horas de terça-feira, Renan chamou o líder do PMDB no Senado, Eunício Oliveira, e avisou que o magistrado permitiria a manobra no dia seguinte. Preveniu o colega de que não votaria pela inabilitação de Dilma. “A cassação já é suficiente”, disse.
Ricardo Lewandowski, o juiz que apitou um pênalti na prorrogação
A destituição do ocupante do cargo e a proibição de ele ocupar cargos e funções públicas por oito anos sempre foram parte indivisível do Artigo 52 da Constituição. A manobra tolerada por Lewandowski, de aplicar apenas metade do que consta no trecho constitucional, é heterodoxa e pode ser questionada. O decano do Supremo, ministro Celso de Mello, entende que a pena é “incindível”. “Parece não muito ortodoxo que tenha havido tratamento autônomo com essa separação entre duas medidas que mutuamente interagem”, disse. Outro ministro da Corte, Gilmar Mendes diz que o fatiamento é “bizarro”. “Vejam como isso é ilógico: se as penas são autônomas, o Senado poderia ter aplicado à ex-presidente a pena de inabilitação, mantendo-a no cargo”, diz. “Não passa na prova dos nove do jardim de infância do Direito Constitucional. Do ponto de vista da solução jurídica, parece realmente extravagante, mas certamente há razões políticas e tudo o mais que justificam.”
ARTICULADOR O ex-presidente Lula. Ele procurou Edison Lobão, e outros, e pediu apoio à manobra para fatiar o julgamento de Dilma (Foto: Paulo Whitaker / Reuters) |
Ao cassar sem inabilitar por oito anos, os senadores não apenas protagonizaram um casuísmo, como o fizeram para garantir a Dilma uma valiosa proteção. A ex-presidente está livre para assumir um cargo, por exemplo, de secretária de Estado, o suficiente para ter um pequeno acesso ao foro privilegiado na segunda instância da Justiça e ficar fora do alcance do juiz Sergio Moro, o temido titular da Lava Jato. Com a perda da prerrogativa de foro de presidente da República, Dilma estaria sujeita a ser julgada por Moro pela suspeita de obstrução da Justiça, quando tentou nomear o ex-presidente Lula seu ministro – também numa tentativa de afastá-lo de Moro. Dilma não foi salva, no entanto, por comiseração. Senadores olham o futuro e o benefício próprio. Como alvos da Lava Jato, muitos deles podem ser beneficiados pelo mesmo estratagema. Renan Calheiros, um investigado, se empenhou na construção da possibilidade; Edison Lobão, outro, aderiu; Romero Jucá, um terceiro candidato, aquiesceu. Expert em manobras legislativas, Jucá ficou impassível ao anúncio da mudança, enquanto o plenário entrava em combustão. “Se o Jucá quisesse, teria embolado tudo facilmente”, diz um de seus colegas de Casa. Mas Jucá não tentou barrar o destaque nem fez nenhum movimento contra o fatiamento. Como primeira consequência, aliados do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, do PMDB do Rio de Janeiro, já pretendem usar o caso de Dilma como precedente para fatiar seu julgamento, marcado para o dia 12. Os deputados Paulinho da Força, do Solidariedade de São Paulo, e Carlos Marun, do PMDB de Mato Grosso do Sul, já disseram que defenderão a tese.
Dar a políticos uma nova guarida do braço da Justiça é parte de um movimento grande, motivado pela Lava Jato. Diante da erupção iminente da colaboração da Odebrecht com a operação, que poderá atingir 200 políticos de todos os grandes partidos, beneficiados com propina e dinheiro de caixa dois, o Congresso debate a possibilidade de aprovar alguma legislação que conceda anistia a quem recebeu dinheiro por fora. Quanto maior o grupo que delinquiu, maior a adesão. Parlamentares e integrantes do Judiciário também são simpáticos a introduzir mecanismos para enfraquecer, por exemplo, o pacote de dez medidas de combate à corrupção, apresentado ao Congresso pelo Ministério Público Federal. O favorecimento a Dilma é a parte mais visível de um artifício que pode beneficiar a todos.
A tese do fatiamento foi lançada em conversas entre Dilma, petistas e seus advogados cerca de 20 dias antes do julgamento. Ficou combinado que Kátia Abreu montaria o cenário, a parte formal da argumentação. Ela então encomendou um parecer junto a um criminalista de seu círculo de amigos, João Costa Ribeiro Filho, suplente do senador Vicentinho Alves (PR-TO). O documento de 13 páginas ficou pronto em 22 de agosto e dois dias depois foi apresentado pelo advogado a Dilma e a seu defensor, José Eduardo Cardozo, no Palácio da Alvorada. A articulação chegou ao Palácio do Planalto no início da semana passada. Oficialmente, o presidente, Michel Temer, enviou o recado de que ficou possesso com a tramoia. Mas, na coreografia que se viu no Senado no dia da votação, tal tese se torna difícil de ser assimilada. Um sinal inequívoco é a passividade de Romero Jucá, o principal instrumento de Temer naquele ambiente.
BENEFICIADO O ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha. Ele pode obter o mesmo tratamento benevolente dispensado a Dilma (Foto: RICARDO BOTELHO/BRAZIL PHOTO PRESS) |
Durante o depoimento de Dilma no Senado na segunda-feira, dia 29, o ânimo da senadora Kátia Abreu, convertida em defensora ferrenha de Dilma, destoava do abatimento da derrota iminente. Kátia andava aos cochichos e sorrisos com aliados. “Prestem atenção, pois tem uma mudança acontecendo aqui”, dizia. Kátia se movimentava, num otimismo que destoava da realidade, para amealhar votos de indecisos favoráveis a Dilma.
No cargo de primeira-amiga de Dilma, a senadora era apenas a face serelepe de um movimento de cordéis comandado por Lula, Renan e Lewandowski. Havia três dias que Kátia Abreu deixara para trás a estratégia de tentar converter indecisos para livrar Dilma da cassação. Naquela noite, ela trabalhava incessantemente para montar o apoio de senadores do PMDB em prol do fatiamento. Na quarta-feira, dia 31, a estratégia do grupo emergiu no destaque apresentado pelo PT, para que a votação do impeachment fosse separada da votação sobre a pena de inabilitação. Lewandowski aceitou.
Apesar de reiterar que não estava ali na condição de juiz, mas apenas para garantir os ritos regimentais, Lewandowski fez questão de emitir uma opinião previamente formulada sobre o fatiamento. “Quero dizer que a formulação desse destaque, a meu ver, com devido respeito aos senhores senadores que se pronunciaram no sentido contrário, tem plausibilidade”, disse. Senadores tucanos e do DEM esbravejaram e teceram argumentos constitucionais contrários. Nada adiantou. Eles haviam sido pegos em uma armadilha urdida entre seu principal aliado, o PMDB, e seu principal adversário, o PT. A história terminou com votos de 36 senadores em favor da tese que livrou Dilma de perder o direito de exercer cargos públicos. Três se abstiveram. Somados, são 39 votos que salvaram a ex-presidente. Doze deles são do PMDB, o partido que ajudou a empurrar Dilma para fora do governo, sócio minoritário do PT na imensa corrupção do petrolão – e, por isso, seu colega de infortúnio na Lava Jato – e aliado do PSDB e do DEM no suporte ao governo Temer no Congresso.
Ainda que o PMDB negue veementemente que houve acordo com o PT e Lewandowski para dar uma mão a Dilma, seus aliados tucanos não acreditam. “Quando eu vi eles de risinho com o Randolfe, essa turma, ficou claro”, disse o senador José Aníbal, do PSDB de São Paulo, após o resultado. Logo depois da votação, o líder do PSDB, Cássio Cunha Lima, criticou o governo, numa demonstração de que uma crise se abria entre tucanos e Planalto. Era a ignição de uma turbulência violenta na base aliada do novo presidente antes mesmo que tomasse posse e horas antes de ele deixar o país para sua primeira viagem oficial, rumo à China. Em busca de mitigar danos, Temer telefonou para o senador Aécio Neves, presidente do PSDB. Assegurou que não houve dedo do governo na manobra. Foi suficiente: Cunha Lima recuou e decidiu demonstrar apoio a Temer. Minutos mais tarde, Aécio entraria no plenário para a posse definitiva de Temer abraçado a Eliseu Padilha, ministro da Casa Civil, para exigir uma contrapartida. O tucano cobrava naquele momento que o Planalto apoiasse a ação que o PSDB levaria ao Supremo para tentar derrubar o fatiamento. “Vocês precisam fazer esse gesto”, disse Aécio. Padilha assentiu com a cabeça. O Palácio do Planalto não se envolveria oficialmente, mas Romero Jucá, efetivado presidente nacional do PMDB naquele dia, recebeu orientação de Temer para subscrever o recurso dos tucanos.
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